Vivemos num país de azeite, pão e vinho. E destas três coisas, logo duas entram nas sopas. Falar de gastronomia portuguesa sem falar da sopa é possível, mas imperfeito.

A sopa faz parte do quotidiano da maioria dos portugueses (apesar dos números mostrarem que comemos menos sopa do que há 30 anos), e o receituário nacional é não só antigo e variado, como é também um valioso espólio que nos ajuda a entender a história e geografia das várias regiões.

Se considerarmos a descoberta do fogo, e de que a primeira técnica culinária terá sido assar carne ou outros alimentos sobre o fogo, a cozedura terá sido muito provavelmente umas das técnicas imediatamente subsequentes, inicialmente através da fervura de água com pedras quentes em peles ou órgãos de animais, ou até cestos, e mais tarde em recipientes estanques de barro. E naturalmente, com a cozedura de carne, peixe ou vegetais, surge o caldo… e a sopa.

O conceito de sopa não é muito difícil de definir; a sopa é um alimento líquido de consistência variável, que resulta da ebulição de alimentos em água, e que é composta por partes sólidas (vegetais, carne, pão, peixe, etc.) e uma parte líquida, a que se apelida de caldo. É, na sua essência, um alimento simples, e altamente nutritivo.

OS CALDOS E AS SOPAS DE PÃO

O caldo poderá ser definido como a parte líquida da sopa, simplesmente, a água de cozedura dos alimentos, ou então uma sopa de consistência mais fina, que poderá, ou não, conter ingredientes cortados em pedaços. No caso do receituário de sopas portuguesas, a utilidade desta definição é dúbia. Há receitas apelidadas de caldo que de caldo nada têm.

Por outro lado, a palavra sopa provém do termo germânico “suppa”, que significa “pedaço de pão ensopado em líquido”, e por extensão, “caldo entornado sobre pão”. Assume-se, então, que o pão será mesmo a base antiga para a sopa, conferindo através dos seus amidos consistência e substância ao caldo. Tornava-se também importante fonte de aproveitamento de sobras de pão seco, evitando o desperdício alimentar. Há claro, outras bases, também elas em geral amiláceas ou mesmo lácteas, que engrossam o caldo e o fazem sopa.

Antigamente, os caldos também se serviam como remédios, encontrando-se receitas de caldos — por vezes um pouco bizarros — para todo o tipo de patologias, como por exemplo o “caldo para inflamação do peito”, o “caldo de víboras para purificar o sangue”, ou o “caldo de rãs e caracóis para tosses secas” presentes no Cozinheiro Moderno de Lucas Rigaud (1780).

Dos caldos que vemos pelo nosso país, veremos em maior pormenor a água ou caldo de unto, e também a canja de galinha. Mas há outros a destacar, como por exemplo o caldo de castanhas piladas do Minho, que é comido tradicionalmente nas sextas-feiras de Quaresma, ou no dia de S. Bartolomeu, e o também minhoto caldo de rabo de boi, e a canja de perdiz de Trás-os-Montes, e a Lisboeta caldeta de amêijoas.

Já as sopas de pão, são mais do que muitas. Como já foi referido, o uso de pão em caldo para fazer sopa é antigo, certamente milenar, em particular na região mediterrânea. O pão é uma das bases da alimentação de todo o sul da Europa, e Portugal, com toda a sua riqueza na arte da masseira, não é excepção. Mais do que veículo para qualquer conduto, serviu como fonte energética económica, e por isso vital, durante gerações. A título de exemplo, em meados do século XVIII, um trabalhador campestre comeria tanto quanto 1 quilograma de pão por dia, para além de caldo, vegetais, um pouco de carne ou peixe, e muito vinho.

O respeito pelo pão era indiscutível, pelo que era conveniente evitar o seu desperdício ao máximo. Assim, um pouco por todo o país, o pão velho ou de sobra era incorporado numa miríade de receitas de aproveitamento, do doce ao salgado. O seu uso para sopas e migas seria provavelmente o mais frequente.

Se meditarmos sobre qual a sopa de pão que mais largamente povoa o imaginário português, chegamos à conclusão de que será provavelmente a humilde e deleitosa açorda, que descreveremos mais atentamente em baixo. Por outro lado, existem também os ferventados da Beira Litoral, que são sopas de pão muito simples feitas de águas de ferver peixe como o bacalhau e a sardinha, carne, como o carneiro ou ossos de porco, ou mesmo vegetais. Também as sopas secas (que descreveremos mais abaixo), que têm frequentemente como base os restos do cozido, têm o pão como ingrediente fundamental. Outros exemplos são a sopa de lebre e a sopa de pão com tomate do Algarve, a sopa de alheiras de Trás-os-Montes, a sopa da panela e a sargalheta do Alentejo, no entanto, há incontáveis outras sopas portuguesas que integram o pão com mais ou menos destaque, simplesmente porque o pão é um ingrediente tão essencial e ubíquo.

Unto | Pork lard | © Frightful Kitchen

ÁGUA OU CALDO DE UNTO

Norte e Beira Alta

Um caldo clássico e de origens ancestrais é a água de unto, que podemos observar tanto no Minho como em Trás-os-Montes. A água de unto não é mais do que água que ferve com unto (gordura que se encontra entre o soventre e o peritoneu), cebola e azeite, e à qual por fim se adiciona pão, e por vezes ovos. Para além de muito económica, trata-se de uma sopa leve, que tradicionalmente serve como pequeno-almoço para os trabalhadores da terra e do pasto. Muito parecido é também o caldo de unto da Beira Alta, que não contém pão, mas sim ovos.

CANJA DE GALINHA

Todo o país

É provável que o caldo mais conhecido em Portugal seja mesmo a canja de galinha. Adorada por muitos, evitada por alguns (que a associam à doença), a canja é um caldo intemporal que atravessa gerações e estratos sociais, e há quem faça juras das suas propriedades curativas para os enfermos, e nutritivas para as parturientes.

A receita é, como seria de esperar, simples. Preparado é o caldo através da cozedura de uma galinha, com temperos diversos, e a cozedura do arroz (mais recentemente, também massa pevide, ou até tapioca) no mesmo caldo. Por fim, pode guarnecer-se de folhas de hortelã, carne esfiapada, miúdos, e com a deliciosa oveira (ovário com os ovos imaturos). Existem pelo nosso país outras canjas, porventura mais recentes do que a de galinha, como a canja de bacalhau ou a canja de conquilhas.

Acredita-se que a origem da canja portuguesa esteja no sudeste asiático, fruto das viagens na época dos descobrimentos. Os congee, ou papas ou caldos de arroz, encontram-se distribuídos um pouco por toda a Ásia, mas acredita-se que a sua génese tenha sido na Índia. Provavelmente terá sido em Goa que os portugueses terão tido o primeiro contacto com esta sopa, que ainda hoje é muito apreciada na região. Não se sabe bem se a canja será descendente do kanji (do tamil para “cozidos” ou “água de cozer arroz”) da região de Tamil Nandu, ou do pez da região de Konan, mas a própria designação “canja” parece uma adaptação da palavra kanji, como refere Garcia de Orta, em 1563: “Damlhe a beber agoa de espresam de arroz com pimenta e cominhos (a que chamão canje”)”.

AÇORDA ALENTEJANA

Alentejo

Quando falamos de sopas de pão, a açorda alentejana é uma referência incontornável. Esta sopa é o porta-estandarte de toda a gastronomia alentejana, e é a prova dada de que a simplicidade pode ser extraordinária. Importa referir que a açorda não é um exclusivo do Alentejo, pois existem açordas um pouco por todo o país.

Para melhor compreendermos a sua origem, convém lembrar a chegada dos mouros à Península Ibérica por volta do século VIII. Os árabes introduzido não só um património agrícola de valor inestimável, como também um legado gastronómico que perdura até aos dias de hoje. Nele, podemos identificar o tharîd (“pão migado ensopado”, em árabe) ou ath-thurda no dialeto andaluz, que será a figura paterna da nossa açorda.

É um prato de aproveitamento, que na criatividade do remediado encontra a glória. A base é sempre a mesma. Composto na sua versão mais singela, por pão velho e seco, e alho e sal pisados em almofariz, rega-se com água fervente (em adição mais completa, com ovos nela escalfados), azeite e tempera-se com ervas aromáticas (o coentro ou o poejo). Partindo-se daqui pode-se adicionar os ingredientes, mais tradicionalmente peixes como bacalhau, peixes de rio ou sardinhas. É uma sopa caldosa e extremamente aromática, cuja consistência é dada pelo pão.

Gaspacho | Paul Goyette, CC BY 2.0

GASPACHO E ARJAMOLHO

Alentejo & Algarve

Nas sopas de pão — mas desta vez frias — e em memórias de Verão, surge-nos o gaspacho. Assemelhando-se o nome (à troca de um “s” por um “z”) com o companheiro andaluz, o gaspacho alentejano tem particularidades próprias. A maior será, provavelmente, que não é integralmente triturado. Segundo o monumental Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto, para fazer o gaspacho pisam-se alhos e sal, adiciona-se azeite, vinagre e orégãos, algum tomate triturado e outro cortado em cubos, bem como o pepino, e pimento em tiras finas. Rega-se tudo com água bem fria, e, ao servir, incorporam-se cubos de pão. Já no Algarve encontramos o arjamolho, em quase tudo igual ao gaspacho, mas alterando-se as proporções. 

Tanto o gaspacho como o arjamolho como agora os conhecemos terão proveniência antiga, mas o aparecimento do pimento e do tomate em Portugal datam ao século XVI, altura em que os espanhóis os trouxeram da América do Sul para a Europa. Supõe-se, então, serem bem mais antigos do que isso, e por isso compostos dos mesmos componentes, à excepção dos frutos sul-americanos.

AS SOPAS DE CARNE

As sopas de carne são uma parte importante do repertório nacional. Mais substanciais, e também naturalmente mais abastadas, as sopas de carne podem valer por si como refeição, e nem tanto como complemento.

Para fazer sopas de carne, os cozinheiros lusos abastecem-se tanto da corte como do curral, da capoeira ou do bosque… a fonte de proteína é variada e muito dependente da zona do país. No entanto, não será surpreendente se referirmos que muitas das sopas nacionais têm por base o porco e o seu fumeiro, e muito frequentemente, é suíno usado do focinho aos pés, como veremos abaixo. Salientamos como amostras o famoso jantar de matança da Beira Baixa que leva ossos, toucinho, courato e chouriço, ou a mítica e substancial sopa da pedra do Ribatejo, e a sopa dos ossos da cabeça de porco da Beira Litoral. Isto para não falar nas sopas de cozido, e sopas secas, que desenvolveremos mais abaixo.

Há também sopas com carnes distintas, como é o caso da opípara sopa do Espírito Santo dos Açores, mais notavelmente da Ilha Terceira e do Faial, que contém carne de vaca, e também o seu fígado e sangue, galinha, couve, hortelã, canela e outros condimentos e apetrechos. Nas sopas de caça, temos por exemplo as sopas de lebre do Algarve e do Alentejo, e também sopa de perdiz e sopa de pombo-bravo de Trás-os-Montes.

SOPAS DE SANGUE

Todo o país

O uso integral do animal é uma das características mais importantes da gastronomia portuguesa. As sopas não fogem da regra, e podemos encontrar exemplares um pouco por todo o país, como por exemplo a sopa de miolos de porco e a sopa de orelheira (Trás-os-Montes), ou a sopa de rabo de boi (Lisboa).

Por outro lado, um ingrediente que aparece frequentemente na sopa é o sangue. Não vale tecer comparações referir à histórica e infame sopa negra dos espartanos, pois as versões portuguesas são verdadeiras delícias. Saltam-nos logo à memória as sopas de sarrabulho (Minho), nas suas diversas variantes, feitas de orgãos como o fígado e os bofes de porco, frango, o sangue de porco cozido, e espessadas com farinha de milho, mas também temos o exemplo da sopa de sangue de Trás-os-Montes, o laburdo da Beira Interior, ou a sopa de sarapatel do Alentejo (neste caso, usando sangue de borrego ou cabrito). Em geral, são sopas frequentemente associadas à época da matança, mas também a ocasiões especiais, como o sarapatel no Domingo de Páscoa em Castelo de Vide.

Cozido | David Stanley, Flickr, CC BY 2.0

SOPA DE COZIDO E SOPAS SECAS

Todo o país

O cozido é um prato omnipresente a todo o território português, mas é também algo que podemos observar por outras regiões europeias, com variações de conteúdo. Por cá, em geral é composto por uma selecção das melhores carnes de locais, tanto frescas, como também nas suas vertentes curadas e enchidos (onde chega a ser muito especializado) este prato é já antigo e potencialmente de origem judaica — claro, sem a carne de porco. Para além das carnes, as componentes vegetais espelham sempre as hortícolas da região, sendo frequentes as couves, cenouras, batatas, mas também nabos e grão-de-bico, entre outras possíveis variantes.

Cozidos os vários componentes, a preciosa e nutritiva calda que resta é sabiamente aproveitada para alguns complementos, como o arroz de cozido, e para o que nos importa agora acima de tudo: a sopa de cozido. Da sopa de cozido, que é uma saborosa e simples calda que toca o vegetal, o cárneo, e o fumado, é uma amálgama de sabores quentes e reconfortantes que nos lembra dos meses de Inverno. Mais ainda, a calda pode sobreviver até à próxima refeição, num prato de aproveitamento apelidado de sopa seca. A sopa seca aproveita (não obrigatoriamente) os restos do cozido, cujas carnes e hortaliças são cortadas e vão à assadeira de barro, que é coberta com pão e caldo, e vai ao forno alourar. Convém não confundir com a versão doce da sopa seca!

RANCHO

Norte e Centro

O rancho é outra sopa de carne que é um clássico nortenho, e que commumente se assume como prato principal nos dias frios de Inverno, dada a robustez e completude da sua composição. Existem diferentes receitas de acordo com a região (Viseu, Trás-os-Montes ou Minho), mas na generalidade o rancho é constituído por grão-de-bico, batatas, carnes de porco, vaca ou galinha, enchidos, e massa (macarrão), e porventura também couve e cenoura.

AS SOPAS DE VEGETAIS

As sopas de vegetais e leguminosas são comuns por todo o país, e têm um papel preponderante no receituário nacional. Fazem-se de produtos hortícolas de todas as regiões, mas também com plantas selvagens; quando não tem esse papel o pão, as sopas vegetais engrossam-se muitas vezes com batata, o que em tempos idos seria feito com castanha, e mais recentemente com chuchu (Sechium edule), uma pequena curcubitácea da América Central, o que também se pode fazer com puré de abóbora.

Existem sopas portuguesas de praticamente todos os cultivares, englobando leguminosas de todas as cores, hortaliças de toda a espécie, tubérculos, ervas, frutos, raízes, rebentos e espigos. São até por vezes indiscriminadas, uma mescla de verduras disponíveis a que se apelida frequentemente de “sopa de legumes” — o que só está correcto se na receita houver leguminosas!

Em tempos idos, a sopa de vegetais seria um fiel reflexo da horta da casa, adaptando-se à sazonalidade das estações, e ao sucesso das colheitas. A horta representava uma importante parte da dieta da casa, e era sempre um garante de alimento em tempos de escassez.

Alguns exemplos notáveis ou curiosos de sopas de vegetais são o ilustre caldo verde do Minho, a sopa de tomate do Alentejo, a sopa de feijão frade e o requentado do Ribatejo, a sopa de trigo e a sopa de moganga da Madeira, feita de abóbora moganga (também conhecida como chila ou gila), mas também a menos conhecida sopa de chícharos (Lathyrus sativus, uma invulgar fabácea) da Estremadura, ou até a sopa de casúlas (cascas de feijão) de Trás-os-Montes.

CALDO VERDE

Minho

Inquestionável ícone da gastronomia minhota, o caldo verde é senhor de si. Rei de qualquer festa popular, melhor amigo da sardinha assada, o caldo verde é um símbolo das sopas tradicionais portuguesas. Sem surpresas, tornou-se também muito popular no Brasil.

A nomenclatura pouco denuncia o conteúdo, pois nem é um caldo, e só em parte é verde. Feito com base de cebola, alho e batatas cozidos, e posteriormente esmagados, ao qual se adiciona couve-galega segada (cortada) para caldo verde (muito fina) pouco antes de a sopa estar pronta. Guarnece-se com uma fatia de chouriço ou salpicão para dar sabor, e um fio de azeite. Não podem faltar depois umas fatias de broa, que são a sua melhor companhia.

Da idade do caldo verde poucas certezas existem, pois a couve-galega há séculos que cresce no Minho, mas a batata apenas se cultiva em Portugal desde o século XVI. Resta saber se era possível haver caldo verde sem batata, ou se antes seria de facto um caldo com pão, ou mesmo de castanha, que mais tarde se passou a fazer de batata.

SOPAS SELVAGENS

Todo o país

Apesar de escassearem na maioria das ementas actuais, é sabido que o repertório português incorpora várias receitas com plantas silvestres. A razão para inclusão destes ingredientes selvagens — especialmente em cozinhas regionais que têm um uso vincado destas plantas, como é o caso da gastronomia alentejana — explica-se através de diversos momentos da história em que a população se viu em situações de carência, e na carência, surge a criatividade e invenção. Adaptaram-se à dieta plantas, raízes, fungos e ervas silvestres que outrora (e por vezes hoje) se desconsideraram, e com elas se matava a fome e se inventavam pratos singulares.

Como exemplos de plantas silvestres que integram o receituário português figuram os agriões (Nasturtium officinale), as urtigas (Urtica dioica), os beldros (Amaranthus lividus), as acelgas (Beta vulgaris), os catacuses (Rumex crispus), os espinafres (Tetragonia tetragonoides), o funcho (Foeniculum vulgare), as beldroegas (Portulaca oleracea), os espargos-bravos (Asparagus aphyllus), os cardos (Scolymus hispanicus), e os cogumelos — que são fungos, e não plantas — como as túberas (Terfezia spp.) ou os míscaros (Tricholoma equestre).

Existe também uma enorme variedade de plantas aromáticas espontâneas que também são utilizadas nas sopas portuguesas, tais como o poejo (Mentha pulegium), tomilhos vários (Thymus spp.), a hortelã (Mentha viridis), o louro (Laurus nobilis), a erva-peixeira (Mentha cervina), e os oregãos (Origanum vulgare), entre muitas outras.

Mas voltando às sopas: em Trás-os-Montes, podemos observar sopas de plantas silvestres como a sopa de beldros ou a sopa de urtigas, já na Beira Interior, a sopa de poejos e a sopa de fiolho (funcho), e no Alentejo, a sopa de túberas com ovos, a sopa de carrasquinhas (cardo), e a sopa de beldroegas. Como seria de esperar, existem vários outros exemplos, melhor ou pior documentados, um pouco por todo o país.

AS SOPAS DE PEIXE E MARISCO

A íntima relação de Portugal com o mar reflecte-se, naturalmente, nas sopas. Encontramos sopas de peixe um pouco por todo o país, mesmo em zonas onde o peixe costeiro tinha histórica dificuldade em chegar. Para o repertório de sopas de mar, foi também vital o papel dos pescadores, que nos barcos preparavam receitas com peixes ou partes menos comercialmente valiosas, que depois disseminavam nas suas comunidades em terra.

Logicamente, nas tradicionais sopas de peixe e marisco fresco, destaca-se o uso das espécies mais disponíveis na zona marítima que rodeia as diversas regiões. Mas a ausência de mar não impedia o surgimento de sopas com peixes marinhos. As sopas de peixe de mar secos abundam particular em zonas onde só os peixes de rio como a truta ou a boga se conseguiriam frescos. O peixe seco era frequentemente vendido em feiras, e guardado todo o ano. Já no receituário de sopas portuguesas, observamos múltiplas sopas de bacalhau que abundam de norte a sul do país, mas podemos também citar como exemplo a sopa de solha seca de Lanhelas (Minho), a sopa de sardinha de barrica, a sopa de congro, e a sopa de peixe seco de Trás-os-Montes, ou a sopa de sarda (ou cavala) e a sopa de cação do Alentejo, apesar de hoje em dia ser mais comum o uso do cação e do congro fresco.

Os peixes migratórios, e por isso sazonais, também têm especial enfoque em certas regiões do país, como é o caso da sopa de enguias de Aveiro, ou mesmo sopa de lampreia, feita desse assustadoramente delicioso ciclóstomo tão apreciado em terras do Minho, como também o é o espinhoso sável (sopa de sável).

Sopa de peixe | Fish soup | Kirk K, CC BY-NC-ND 2.0

Quando falamos de marisco, que também abunda na mesa portuguesa, temos exemplos de sopas que vêm de Lisboa, tais como a sopa de camarão ou a sopa de ostras, mas também do Algarve, no caso da canja de conquilhas e a sopa de lingueirão, e também a sopa de lapas da Apúlia.

Chora de bacalhau | © DGADR

CHORA DE BACALHAU

Regiões de pescadores da faina maior

Os pescadores portugueses que se aventuravam nos frios mares a norte, em particular nas águas do Mar de Laborador e oceano Atlântico, em redor da Terra Nova, Labrador, Nova Escócia, e da Gronelândia, vivam uma vida dura, de trabalho fatigante e incessante. Na frequente penúria em que vivam nas embarcações de faina, acabaram por gerar uma série de receitas para aproveitar as partes não comercialmente valiosas do bacalhau, tais como os sames (bexiga natatória), bochechas, línguas, e caras. A chora de bacalhau é precisamente uma destas receitas de aproveitamento, que também se limitava a usar o que havia disponível a bordo, e daí a ausência de vegetais frescos. Trata-se de uma sopa extremamente simples e saborosa, que aproveita as caras (cabeças de bacalhau), arroz, e utilizando-se também outros ingredientes como toucinho, banha, tomate, cebola, louro e alho.

CALDEIRADA

Todo o país

A sopa de peixe mais completa, celebrada, e profusa da nossa gastronomia será certamente a caldeirada. Presente um pouco por toda a costa portuguesa, esta aparente amálgama marinha tem uma maior estrutura do que se pensa. O conteúdo de cada singular caldeirada representa (por hábito) fielmente a fauna de peixe, cefalópodes e marisco das várias léguas marítimas que rodeiam a região. Para além dessa orientação piscatória, a caldeirada pode ou não incluir batatas, tomate, ou haver lugar ao refogado, e outros condimentos. Das mais conhecidas, podemos referir a caldeirada de enguias da Beira Litoral, que é uma ode a este delicado e precioso peixe migratório, e também a caldeirada algarvia, que contém peixes como o rascasso, o safio, a pata-roxa, e outros como a raia, o tamboril, a corvina e o ruivo (entre outros), bem como bivalves como a amêijoa, depois regados com vinho branco, salsa, tomate, batatas e condimentos. As caldeiradas ribatejanas são também elas um portento, como é o caso da caldeirada à fragateiro, a caldeirada à pescador, e a caldeirada de bacalhau. Dos Açores vem-nos o caldo de peixe, que usa os locais lírios, muge, roucas, garoupa e sargo, a da rica Estremadura surgem a caldeirada à moda da Nazaré, a caldeirada de sardinha e a caldeirada à Setubalense. Há muitas outras, todas deliciosas e interessantes à sua maneira, que convém continuar a provar, cozinhar e promover.

Como vemos, as sopas portuguesas representam uma preciosa parte do nosso património gastronómico que é necessário promover e perpetuar, de forma a podermos dar às novas gerações a possibilidade de provar sabores antigos (e saudáveis) da nossa herança cultural.

Pedimos que comente este post com as sopas da sua região, e os melhores locais onde as provar, de forma a podermos partilhar este conhecimento com todos.

Referências

Orta, Garcia de (1563) “Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India (…)”, Impresso em Goa : por Ioannes de endem

Rigaud, Lucas (1780) “Cozinheiro Moderno”, Offic. Patriarc. de Francisco Luiz Ameno

Modesto, Maria de Lourdes (1983) “Cozinha Tradicional Portuguesa”, Verbo

Quitério, José (2015) “Bem Comer & Curiosidades”, Documenta

Saramago, Alfredo (1999-2003) “Cozinha do Minho”, “Cozinha Transmontana”, “Cozinha  da Beira Interior”, “Cozinha da Beira Litoral”, “Cozinha de Lisboa e seu Termo”, Assírio & Alvim

Valagão, Maria-Manuel “A sopa em Portugal e as sopas de plantas silvestres alimentares.”

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